O objetivo primeiro da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) não é aquele em que a discussão pública mais tem se concentrado: o fim dos lixões e de sua forma apenas um pouco menos nociva, os aterros controlados.
É vergonhoso, de fato, que às vésperas da determinação legal de que todo o lixo vá para aterros sanitários, 40% dele ainda tenha destinação inadequada. Mas suprimir lixões e aterros controlados é ponto de partida, e não de chegada.
Aprovada em 2010, a PNRS orienta-se por um valor: transformar o que hoje é lixo em base para a formação de nova riqueza. O Brasil é uma sociedade do "jogar fora". É fundamental, sobretudo considerando o crescente acesso de consumidores a bens e serviços, que ele se converta em uma sociedade saudável do ponto de vista do ciclo de materiais em que se apoia sua riqueza. E isso não vai acontecer se o esforço nessa direção depender apenas do poder público ou de apelos vagos à consciência da população.
Os países que conseguiram, nos últimos anos, aumentar a riqueza, reduzir os impactos dos remanescentes do consumo e dar-lhes uma destinação adequada são aqueles em que o setor privado paga inteiramente a conta da coleta e do uso correto dos materiais recicláveis.
No Brasil, isso já ocorre com baterias automotivas, pneus, óleos lubrificantes, embalagens de óleos lubrificantes e embalagens de agrotóxicos. São produtos que, durante muitos anos, foram descartados de forma predatória e hoje são encaminhados cada vez mais à reciclagem.
Os serviços públicos de limpeza não se envolvem com sua coleta, que é assegurada por organizações públicas e não estatais formadas por importadores e produtores. Mesmo que haja problemas de operacionalização, o sistema tem a virtude de aplicar o princípio do poluidor pagador à produção e ao uso dos bens e dos serviços. O que resta do consumo de um bem deve ser responsabilidade de quem produz, importa e, em última análise, consome.
Isso vai aumentar o preço do produto? Sim, e aí está a grande virtude do sistema: cobrar do agente privado a logística reversa é sinalizar a todos os elos da cadeia (da produção ao consumo) que existe um custo naquilo que subsiste de seu uso. Revelar esse custo estimula melhores soluções tanto na maneira como são embalados e utilizados os bens como no seu encaminhamento à reciclagem.
O principal instrumento que permitiu aos países desenvolvidos ampliar de maneira significativa a reciclagem de resíduos sólidos, desde o início do milênio, é a responsabilidade ampliada do produtor (EPR - extended producer responsibility, na expressão em inglês). Relatório recém-publicado pela agência ambiental europeia mostra que a quantidade de lixo incinerada ou mandada para aterros reduziu e que a reciclagem, no continente, passou de 23% a 35% dos resíduos, entre 2001 e 2010, um aumento muito considerável.
Mais que isso: a Alemanha vem conseguindo descasar a produção de riqueza da geração de lixo. Relatório do Bifa Enrironmental Institute mostra que, entre 2000 e 2008 (portanto, antes da crise), o PIB, em termos reais, cresceu quase dez por cento, e o volume de lixo caiu nada menos que 15%. A intensidade em lixo da vida econômica, medida decisiva para avaliar a qualidade da relação que uma sociedade mantém com seus recursos ecossistêmicos, declina mais de 22%.
Maior riqueza e menos lixo: como isso é possível?
A responsabilidade ampliada do produtor ajuda a responder essa pergunta. O conceito, que hoje se encontra no âmago das políticas europeias e é adotado também em vários Estados norte-americanos, foi usado pela primeira vez em 1990 pelo pesquisador Thomas Lindhqvist num relatório para o Ministério do Meio Ambiente da Suécia. Vale a pena citar sua própria definição: “A responsabilidade ampliada do produtor é uma estratégia de proteção ambiental para alcançar o objetivo de reduzir o impacto ambiental de um produto tornando seu fabricante responsável pelo conjunto do ciclo de vida do produto e, especialmente, por sua coleta, sua reciclagem e sua disposição final”.
É claro que, para que isso ocorra, o consumidor tem que fazer uma separação correta, os comerciantes devem possuir dispositivos onde alguns resíduos serão colocados, e o governo precisa organizar a coleta nos domicílios. Mas é ilusão imaginar que o avanço europeu recente na redução do lixo e na elevação da taxa de reciclagem seja apenas devido ao nível educacional da população e à eficiência das prefeituras.
O fundamental, e que em última análise responde pelos bons resultados europeus, é a responsabilidade do fabricante pelo conjunto do ciclo de vida do produto. No caso francês, por exemplo, já existem 19 cadeias produtivas em que vigora um ecoimposto que contribui para financiar os sistemas municipais de coleta e reciclagem. Quem produz o detrito paga antecipadamente (e cobra de seu consumidor, é claro) por dar-lhe a destinação correta. Acaba de ser aprovada uma lei segundo a qual quem compra uma cadeira paga 0,20 euros por sua reciclagem futura e 4 euros para que um colchão não acabe na rua ou num rio. É uma prática contrária à que marcou o crescimento econômico do século 20.
Na prática corrente até aqui, a vida econômica se organiza de maneira linear, a partir do procedimento “pega-produz-consome-joga”. Os produtos vão do berço à sepultura e, para fazer novos produtos, recorre-se novamente a matérias-primas virgens, que alimentam processos produtivos, cujos resultados são consumidos e, em seguida, jogados fora. O problema é que não existe esse “fora”.
A escassez e o encarecimento das matérias-primas, as possibilidades cada vez mais limitadas de encontrar espaços para aterros e os custos exorbitantes da incineração abrem caminho a que os agentes econômicos passem a tratar como fonte de riqueza os materiais até então destinados ao lixo. Relatório recente da Fundação Ellen Macarthur fala em economia circular, em oposição à economia linear do “pega-produz-consome-joga”: a economia circular é aquela em que parte crescente dos resíduos é usada como insumo na fabricação de novos produtos.
Numa economia circular, a própria concepção do produto, seu design, já incorpora e amplia as possibilidades de recuperação e reutilização dos materiais nele contidos. Isso revoluciona, por exemplo, a maneira como são fabricados bens eletrônicos, cujas ligas devem prever recuperação e manuseio fácil, sem o que o destino de materiais, muitas vezes raros e preciosos, acabará sendo o lixo e, pior, o lixo tóxico, já que a separação dos componentes é muito difícil. Existindo responsabilidade ampliada do produtor, o fabricante exigirá de seus engenheiros um produto que, contrariamente ao que ocorre hoje, facilite o trabalho da reciclagem e, preferencialmente, o reuso da maior parte daquilo que o integra.
Os Estados Unidos são o país de pior desempenho em termos de reciclagem entre os desenvolvidos. A razão disso está no fato de que, na União Europeia, o custo da recuperação e da reciclagem é assumido pelo setor privado e exposto claramente e pago pelo consumidor.
O atraso dos Estados Unidos (os maiores geradores de lixo do mundo) poderá ser recuperado com o recente e alvissareiro compromisso assumido pela Coca-Cola e a Nestlé Waters segundo o qual passarão a se responsabilizar financeiramente pela organização do sistema de recolhimento e destinação correta das embalagens daquilo que vendem.
É fundamental que o passo dado por essas grandes corporações nos países desenvolvidos sirva como exemplo ao Brasil e alcance o conjunto do setor de embalagens. Ou então que se explique a razão de dois pesos e duas medidas.
O trabalho da Fundação Macarthur mostra que, na Grã-Bretanha, a substituição de garrafas descartáveis de cerveja pela velha prática do depósito de vasilhame permitiria, por exemplo, a redução de 20% do custo total do produto. Onze Estados norte-americanos já adotaram leis que obrigam a volta dessa prática. O consumo de cerveja “one-way”, por exemplo, pode ser mais confortável, mas, se o seu custo real estiver incorporado ao produto, caberá ao consumidor saber se deseja, de fato, pagar por ele.
São exemplos importantes e que oferecem lições valiosas, neste momento em que, no Brasil, se estabelecem os acordos setoriais que vão dar vida para a nossa Política Nacional de Resíduos Sólidos. Acabar com os lixões, melhorar a situação dos catadores e ampliar seu papel no interior da política são objetivos decisivos. Mas a capacidade de a PNRS diminuir a produção de lixo e ampliar a reciclagem depende, antes de tudo, de mecanismos que estimulem os fabricantes a usar menos materiais, menos energia e propiciar à sociedade maiores oportunidades de transformar lixo em riqueza. É fundamental então que fique claramente esclarecida sua responsabilidade pelos resíduos ligados aos produtos que colocam no mercado.
RICARDO ABRAMOVAY, 60, é professor titular de sociologia econômica da Universidade de São Paulo e coautor de "Lixo Zero"
Adaptado de: Folha de São Paulo e Planeta Sustentável
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